Heterogeneidade nas estratégias de leitura/escrita em crianças com dificuldades de leitura e escrita.
Heterogeneidade nas estratégias de leitura/escrita em
crianças com dificuldades de leitura e escrita
Jerusa Fumagalli de Salles
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
Maria Alice de Mattos Pimenta Parente
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
RESUMO
As características das dificuldades de leitura e escrita em crianças variam conforme o sistema de escrita na
qual estão sendo alfabetizadas. Este estudo visa analisar as estratégias de leitura e escrita de palavras de
crianças de 2ª série com dificuldade de leitura e escrita (n = 14), comparando-as às de crianças de 2ª série
competentes na leitura e escrita (n = 15) e às de crianças de 1ª série (n = 9), emparelhadas pelo desempenho
na leitura e escrita de palavras. Nas crianças de 2ª série com dificuldade de leitura e escrita foram encontradas
dissociações duplas na leitura (os leitores preferencialmente fonológicos e os preferencialmente lexicais)
e simples na escrita (escritores preferencialmente fonológicos). Além disso, houve casos em que ambas
rotas estavam deficitárias. Considerando a semelhança de perfis entre os casos de 1ª série e de 2ª série com
dificuldade de leitura e escrita, estes últimos podem estar apresentando atraso de desenvolvimento de leitura
e escrita.
Palavras-chave: dificuldades de leitura e escrita; modelo de Dupla-Rota; Neuropsicologia; estratégias de
leitura e escrita; dislexias.
ABSTRACT
Heterogeneity in the reading/writing strategies in children with reading and writing difficulties
The characteristics of reading and writing difficulties in children vary according to the system by which the
children are being taught to read and write. This study aims to analyze the word reading and writing strategies
in second grade children with reading and writing difficulties (n = 14) and to compare them with two groups:
competent reading and writing second graders (n = 15) and first graders (n = 9), paired to word reading and
writing performance. In second grade children with reading and writing difficulties we found double
dissociations in reading (the preferably phonological readers and the preferably lexical readers) and simple
dissociations in writing (preferably phonological writers). Besides, there were cases with deficits in both
routes. Considering the similar profiles between first grade cases and second grade cases with reading and
writing difficulties, the latter can be presenting a developmental backwardness in reading and writing.
Key words: Reading and writing difficulties; Dual-Route model; Neuropsychology; reading and writing
strategies; dyslexia.
v. 37, n. 1, pp. 83-90, jan./abr. 2006
PSICOΨ
As dificuldades específicas de leitura ou dislexias
de desenvolvimento são caracterizadas por problemas
significantes no reconhecimento de palavras em crianças
que apresentam inteligência média, fluência na língua
materna, nenhum déficit sensorial primário ou
problemas emocionais (Wise, Ring e Olson, 1999).
Apesar das diferentes terminologias propostas para as
dificuldades de leitura em crianças, vários autores as
colocam como equivalentes às dislexias de desenvolvimento
(Pinheiro, 1995, Giacheti e Capellini, 2000).
Em função das dificuldades apresentadas também na
escrita e considerando os problemas com a definição
do quadro das dislexias de desenvolvimento (ver
Salles, Parente e Machado, 2004), neste estudo utilizamos
o termo dificuldades de leitura e escrita, que
inclui crianças com déficits no processamento receptivo
(leitura) e expressivo (escrita) de palavras e de texto.
As dificuldades de leitura e escrita em crianças não
são consideradas uma categoria uniforme e consensual
na literatura internacional. De acordo com o aporte da
Neuropsicologia Cognitiva, baseado no estudo das
84 Salles, J. F. & Parente, M. A. M. P.
PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 37, n. 1, pp. 83-90, jan./abr. 2006
dislexias e disgrafias adquiridas e nos modelos
cognitivos de leitura e de escrita de Dupla-Rota (Ellis
e Young, 1988; Ellis, 1995), considera-se três diferentes
tipos de dislexias e disgrafias de desenvolvimento:
1) dislexia/disgrafia fonológica, caracterizadas por dificuldades
no uso da estratégia fonológica; 2) dislexia/
disgrafia de superfície, ou seja, dificuldades no nível
do tratamento ortográfico da informação (rota lexical),
e 3) dislexia/disgrafia mista, na qual ambas rotas –
fonológica e lexical – estão comprometidas.
Nessa abordagem cognitiva, a leitura e a escrita
são atividades complexas compostas por múltiplos
processos interdependentes. O reconhecimento e a
produção de palavras escritas, em um sistema alfabético
de escrita, pode ocorrer por meio de um processo
visual direto (rota lexical) ou através de um processo
envolvendo mediação fonológica (rota fonológica),
conforme os modelos de leitura e de escrita de Dupla-
Rota (Ellis e Young, 1988; Ellis, 1995). O desempenho
na leitura/escrita de pseudopalavras é usado para
inferir o uso da rota fonológica de leitura e escrita e o
desempenho nas palavras irregulares, cuja correspondência
entre fonemas e grafemas é ambígua, exigindo
conhecimento prévio do estímulo para a precisão da
resposta, é usado para analisar o uso da rota lexical.
No Brasil, poucos estudos, como os de Pinheiro
(1994, 1999, 2001) tentaram classificar o grupo de crianças
com dificuldades de leitura e escrita em relação às
estratégias subjacentes aos processos de leitura e escrita.
Outras pesquisas (Capellini e Ciasca, 2000a,b)
apenas diferenciam as crianças com dificuldades de
aprendizagem geral e com dificuldades específicas de
leitura. Portanto, ainda permanece em aberto quais as
formas de dificuldades de leitura e escrita encontradas
em crianças brasileiras e se os perfis de desempenho
são exclusivos de crianças com dificuldade de leitura
e escrita ou se também são encontrados em leitores/
escritores competentes. Esta última questão permite
investigar se as dificuldades de leitura e escrita representam
melhor uma condição de atraso ou de desvio
de desenvolvimento.
Na neuropsicologia, a busca de dissociações entre
funções avaliadas pode ser elucidativa para os modelos
cognitivos de processamento da informação, pois
dissociações duplas são indicativas de processamentos
funcionais distintos. Uma dissociação simples referese
a uma diferença no desempenho de duas tarefas distintas
em um mesmo caso, enquanto que dissociações
duplas implicam em encontrar outro caso com o quadro
exatamente oposto. Esta abordagem baseia-se no
pressuposto da modularidade, ou seja, de que o sistema
cognitivo contém grupos de subsistemas, de relativa
independência. O dano causado a um módulo não afeta
diretamente o funcionamento dos outros módulos.
Desta forma, o estudo dos tipos distintos de
dislexias e disgrafias, fonológica e de superfície, fornece
evidência a respeito das diferentes estratégias utilizadas
na leitura e na escrita de palavras em leitores/
escritores competentes e em processo de aprendizagem.
Além disso, evidencia o fato destas estratégias
poderem estar seletivamente deficitárias, tanto nas lesões
cerebrais (dislexias/disgrafias adquiridas), quanto
nos problemas de desenvolvimento da leitura e da
escrita (dislexias/disgrafias de desenvolvimento). De
acordo com Coltheart, Bates e Castles (1994), a discussão
sobre se é o correto o uso do termo disléxico
para crianças com problemas de leitura é irrelevante
numa abordagem neuropsicológica cognitiva. A questão
crucial é que, no estudo da aquisição das rotas do
modelo de Dupla-Rota, são encontradas crianças que
estão adquirindo a rota lexical muito melhor do que a
fonológica, e, por outro lado, crianças com o perfil
oposto.
Parece haver uma variabilidade de estratégias de
leitura também no desenvolvimento típico. Baron
(1979), Freebody e Byrne (1988) e Byrne, Freebody e
Gates (1992) encontraram evidências de preferência a
uma estratégia de leitura (lexical ou fonológica) em
detrimento de outra em crianças falantes da língua inglesa.
Salles (2001) e Salles e Parente (2002b), estudando
crianças brasileiras, também encontraram leitores
preferencialmente fonológicos e leitores preferencialmente
lexicais.
Um problema na área das dificuldades de leitura e
escrita é que os métodos para subdividir as crianças
variam enormemente de um estudo para outro, tornando
difícil a comparação entre eles. A maioria deles
compara os escores na leitura e escrita de palavras irregulares
e de pseudopalavras (Castles e Coltheart,
1993; Manis, Seidenberg, Dói, McBride-Chang e
Petersen, 1996; Castles, Datta, Gayan e Olson, 1999).
Além disso, as características dos sistemas de escrita
influenciam nos padrões de maus leitores encontrados.
No inglês, por exemplo, como é um sistema bastante
irregular, é esperado que o uso do processo de conversão
grafema-fonema seja mais suscetível a erros, enquanto
que o processo visual (rota lexical) parece mais
seguro na obtenção da precisão de leitura.
Estudos realizados na língua inglesa encontraram
dissociações duplas entre as rotas de leitura fonológica
e lexical em crianças com dificuldades de leitura
(Castles e Coltheart, 1993; Manis e cols., 1996;
Castles e cols., 1999), mas o padrão mais comum é o
fracasso da rota fonológica (dislexia fonológica). No
Brasil, Pinheiro (1999, 2001) encontrou apenas os padrões
de dislexia fonológica e mista. Porém, na pesquisa
de Pinheiro (2001), com crianças brasileiras de
4ª série, os leitores com dificuldade não diferiram dos
Heterogeneidade nas estratégias de leitura/escrita ... 85
PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 37, n. 1, pp. 83-90, jan./abr. 2006
considerados competentes na precisão e tipos de erros
de leitura, todos denotando o uso do processo fonológico.
Portanto, nessa abordagem todos os casos de
dislexia fonológica estudados mostraram um nível de
sucesso em leitura de pseudopalavras, a despeito de
um funcionamento lento e propenso a erros da rota
fonológica.
Ainda são necessários estudos com crianças brasileiras
para investigar a variabilidade de perfis de dificuldades
de leitura e escrita e se esta constitui
dissociações duplas entre as rotas de leitura e escrita
fonológica e lexical. Considerando as diferenças de
critérios entre as pesquisas, o presente estudo estabeleceu
um critério próprio, com base no desempenho
da amostra total de 2ª série (n = 110) avaliada para
a seleção dos grupos, na leitura e escrita de palavras
irregulares (avalia o processo lexical) e de pseudopalavras
(avalia o processo fonológico).
Como o objetivo deste estudo foi analisar variabilidade
intragrupos, foi utilizado um delineamento que
combina estudos de grupos a estudos de casos. Na
neuropsicologia cognitiva há basicamente duas vertentes
de estudos que divergem em termos metodológicos:
estudos de casos (Caramazza e MacCloskey, 1988)
versus estudos de grupos (Robertson, Kmight, Rafal e
Shimamura, 1993). Os estudos de grupos são, muitas
vezes, criticados por obscurecem a variabilidade individual
ao trabalharem com médias e pela busca de associações
de sintomas ao invés de dissociações.
Os objetivos deste estudo foram investigar as estratégias
de leitura e escrita de palavras e a possível
ocorrência de dissociações nos processos cognitivos
subjacentes à leitura e à escrita de palavras isoladas
entre crianças de 2ª série com dificuldade de leitura e
escrita, comparando-as às crianças de 2ª série competentes
na leitura e escrita e às crianças de 1ª série.
MÉTODO
Participantes
A amostra deste estudo foi composta por três grupos:
1) 14 crianças de 2ª série com dificuldade de
leitura e escrita, com média de idade de 8,43 anos
(DP = 0,62), sendo 04 delas repetentes; 2) 15 crianças
de 2ª série competente em leitura e escrita, com média
de idade de 8,21 anos (DP = 0,33); e 3) 09 crianças de
1ª série, emparelhadas com o grupo com dificuldade
de leitura e escrita pelo desempenho na leitura e escrita
de palavras, com média de idade de 7,06 anos
(DP = 0,25).
A seleção dos dois grupos de 2ª série seguiu uma
adaptação do critério estatístico baseado no desvio padrão
(ver Simmons, Kuykendall, King, Cornachione e
Kameenui, 2000), considerando o escore final na leitura
de palavras isoladas, compreensão de leitura textual,
escrita de palavras isoladas e produção textual
escrita. Aqueles casos que apresentaram valores superiores
a 1 foram enquadrados no grupo de 2ª série competente
em leitura e escrita, enquanto aqueles que
apresentaram valores inferiores a -1 (menos um) fizeram
parte do grupo de crianças com dificuldades de
leitura e escrita.
Foram critérios de exclusão da amostra: suspeita
de déficit auditivo e/ou visual não corrigidos; histórico
de problemas neurológicos adquiridos; portadores
de necessidades educativas especiais, em regime de
inclusão; e desempenho no teste de Matrizes Progressivas
Coloridas de Raven igual ou inferior a 25%.
Delineamento, instrumentos e procedimentos
Este é um estudo com delineamento misto, combinando
estudo quase-experimental de grupos contrastantes
(Nachmias e Nachmias, 1996) e estudo de
séries de casos individuais (Robson, 1993), comparando
crianças de 2ª série com dificuldade de leitura e escrita
a dois grupos, um de 2ª série, leitores e escritores
competentes, emparelhados por idade cronológica, e
outro de 1ª série, emparelhado pelo desempenho em
leitura e escrita de palavras.
Os instrumentos utilizados na seleção dos grupos
são descritos detalhadamente em Salles (2005). No
presente estudo, foram considerados os escores na tarefa
de leitura de palavras isoladas (Salles, 2001;
Salles e Parente, 2002a,b) e em duas tarefas de escrita
de palavras isoladas, uma retirada do International
Dyslexia Test (Smythe e Everatt, 2000, Capovilla,
Smythe, Capovilla e Everatt, 2001) e outra proposta
por Pinheiro (1994). Foram considerados os escores
apenas das categorias de palavras irregulares (cujas
correspondências letra-som são arbitrárias, não
explicadas por regras) e de pseudopalavras (possuem
a estrutura de palavra aceita no português, mas sem
significado), na forma de porcentagem de acertos. As
primeiras permitem inferência a respeito da funcionalidade
das rotas lexical de leitura e de escrita e as
pseudopalavras mostram a funcionalidade das rotas
fonológica de leitura e escrita, conforme modelos
cognitivos de leitura e de escrita de Dupla-Rota, já
expostos na introdução.
Nos casos dos grupos de 2ª série, os escores na escrita
de palavras irregulares e de pseudopalavras foram
obtidos com a média aritmética dos escores dos
dois instrumentos aplicados.
RESULTADOS
Os resultados dos desempenhos dos casos na
leitura e escrita de palavras irregulares e de
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pseudopalavras são expostos em gráficos, por grupos,
como mostra a Figura 1. Para considerar que as rotas
de leitura fonológica e lexical são funcionais, foi
tomado como parâmetro (ponto de corte), respectivamente,
as médias de acertos na leitura de pseudopalavras
e de palavras irregulares obtidas pela amostra
total de crianças de 2ª série pesquisada (n = 110)
para a seleção dos grupos extremos. Assim, considerou-
se precisão no uso da rota fonológica quando o
desempenho na leitura de pseudopalavras era igual ou
superior a 75%. Para a rota lexical, o critério, baseado
no desempenho nas palavras irregulares, foi 65%. A
diferença de critério nas duas categorias de estímulos
é coerente em função da menor familiaridade com
as palavras irregulares na 2ª série do Ensino Fundamental.
(A) Casos do grupo de
2ª série com dificuldade
de leitura e escrita
0
20
40
60
80
100
8 10 20 25 41 45 56 57 58 64 72 82 85 94
casos
escore
(B) Casos do grupo de
2ª série competente em
leitura e escrita
0
20
40
60
80
100
1 11 13 15 30 31 35 40 46 65 73 86 100 102 109
casos
escore
(C) Casos do grupo de
1ª série
0
20
40
60
80
100
111 114 116 118 120 121 122 123 124
ca sos
escore
leitu ra irregula re s
leitu ra
p s eudop alavras
es crit a irregulares
es crit a
p s eudop alavras
FIGURA 1 – Escores (porcentagem de acertos) na leitura e na escrita de palavras irregulares e de pseudopalavras dos casos dos
grupos de 2ª série com dificuldade de leitura e escrita (A), de 2ª série competente em leitura e escrita (B) e de 1ª série (C).
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PSICO, Porto Alegre, PUCRS, v. 37, n. 1, pp. 83-90, jan./abr. 2006
Com base neste critério, três crianças (casos 8, 56,
58) apresentaram desempenho igual a 75% nas
pseudopalavras. Duas destas (casos 8 e 58) podem ser
consideradas leitores preferencialmente fonológicos,
com precisão no uso da rota fonológica (escore alto
nas pseudopalavras), mas dificuldade no uso da rota
lexical (desempenho abaixo de 65% nas palavras irregulares).
O caso 56 apresenta precisão no uso de
ambas as rotas, pois tanto nas palavras irregulares
quanto nas pseudopalavras os escores foram superiores
aos critérios estabelecidos. Quatro casos (64, 72,
82 e 94) enquadram-se no critério estabelecido para as
palavras irregulares (igual ou superior a 65%), mas
não para as pseudopalavras, sendo, portanto, considerandos
leitores preferencialmente lexicais. No
entanto, como a porcentagem de acertos nas pseudopalavras
ficou em torno de 75% (variou entre 55 a
70%), não se trataria de casos com grandes dificuldades
no uso da rota fonológica.
Sete casos apresentaram dificuldades no uso de
ambas rotas de leitura (casos 10, 20, 25, 41, 45, 57 e
85). Destes, a maioria apresentava rota fonológica superior
à lexical, com porcentagem de acertos nas
pseudopalavras entre 60 e 70%. Portanto, apenas duas
crianças (casos 10 e 41) tinham realmente sérias dificuldades
no uso de ambas as rotas de leitura.
Na escrita de palavras (Figura 1 A), novamente foi
tomado como parâmetro a média dos escores na escrita
das palavras irregulares e das pseudopalavras obtido
pela amostra geral de 2ª série pesquisada para seleção
dos grupos (n = 110). Os pontos de corte para
considerar que há precisão no uso das rotas fonológica
e lexical de escrita são escores iguais ou superiores a
67% na escrita de pseudopalavras e iguais ou superiores
a 42% na escrita de palavras irregulares, respectivamente.
Com base neste critério, apenas três crianças do
grupo com dificuldade de leitura e escrita escreveram
pseudopalavras com precisão superior a 67%, mas
nenhuma atingiu o critério mínimo de funcionalidade
da rota lexical (escrita de palavras irregulares).
Portanto, três casos (58, 64 e 82) apresentaram um
padrão de escrita preferencialmente fonológica,
com rota fonológica preservada e dificuldade no
uso da rota lexical. O restante da amostra foi muito
impreciso em ambos estímulos, o que sugere dificuldade
no uso de ambas rotas de escrita. Portanto,
a possibilidade de falha nas rotas fonológica e lexical
parece também depender da modalidade, sendo
mais evidente na atividade de produção escrita de
palavras.
Analisando a Figura 1 (B), dos casos do grupo de
2ª série competente em leitura e escrita, na leitura todas
as crianças apresentaram escores iguais ou superiores
a 75% em ambas categorias de estímulos, sendo
considerados bons leitores por ambas as rotas. Na escrita,
duas crianças (casos 1 e 30) não atingiram o escore
de 42% nas palavras irregulares, sendo consideradas
leitores preferencialmente fonológicos, e apenas
uma criança (caso 100) não atingiu o escore de 67%
nas pseudopalavras, sendo considerada preferencialmente
lexical. Desta forma, a grande maioria fazia uso
preciso de ambas rotas de escrita.
Como critério para inferir a funcionalidade das rotas
fonológica e lexical de leitura e de escrita dos casos
da 1ª série foi tomado como referência o padrão
médio da turma de 1ª série avaliada para selecionar os
casos de 1ª série que integraram este estudo. Desta forma,
o critério adotado na leitura para considerar a rota
fonológica funcional foi porcentagem de acertos nas
pseudopalavras igual ou superior a 70%. Para considerar
a rota lexical funcional, o escore na leitura de
palavras irregulares deveria ser igual ou superior a
49%. Na escrita, os escores nas palavras irregulares e
pseudopalavras deveriam ser iguais ou superiores a
31% e 60%, respectivamente, para considerar as rotas
lexical e fonológica funcionais.
Na 1ª série, conforme apresentado na Figura 1 (C),
quatro crianças (casos 114, 118, 123, 124) não atingiram
escore de 70% na leitura de pseudopalavras e sete
casos (111, 116, 118, 121, 122, 123, 124) não atingiam
o critério de precisão de 49% na leitura das palavras
irregulares. Pode-se inferir que quatro crianças
(casos 111, 116, 121, 122) eram preferencialmente
fonológicas, com desempenho nas pseudopalavras
alto, mas baixo desempenho nas palavras irregulares.
Uma criança (caso 120) usava precisamente ambas as
rotas e três crianças (casos 118, 123, 124) apresentavam
dificuldade no uso de ambas as rotas, segundo os
critérios estabelecidos. Uma criança (caso 114) poderia
ser considerada leitor preferencialmente lexical,
pois enquadrou-se no critério apenas das palavras irregulares
(escore superior a 49%).
Na escrita, seis casos (114, 116, 120, 121, 123 e
124) não atingiram o critério de 60% de precisão na
escrita de pseudopalavras, enquanto que cinco casos
(111, 118, 121, 123 e 124) não atingiram o critério de
31% na escrita de palavras irregulares. Pode-se inferir
que dois casos (111, 118) eram preferencialmente
fonológicos na escrita e um caso (122) fazia bom uso
de ambas rotas de escrita. Três casos (114, 116 e 120)
poderiam ser considerados preferencialmente lexicais,
pois enquadraram-se no critério para as palavras irregulares,
mas não para as pseudopalavras. Três casos
(121, 123 e 124) apresentavam dificuldade no uso de
ambas as rotas de escrita.
88 Salles, J. F. & Parente, M. A. M. P.
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DISCUSSÃO
Os casos de 2ª série competentes em leitura e escrita,
que representam o extremo superior do contínuo
de desenvolvimento normal das habilidades de leitura
e escrita, evidenciaram uso preciso de ambas rotas de
leitura. Na escrita, a grande maioria usava de forma
precisa ambas rotas, mas foi possível encontrar escritores
preferencialmente lexicais e escritores preferencialmente
fonológicos.
No estudo dos casos de 2ª série com dificuldade
de leitura e escrita, foram encontrados os três padrões
de dificuldades de leitura relatados na literatura: imprecisão
no uso de ambas rotas (semelhante ao padrão
de dislexia mista), com desempenho baixo na leitura
de palavras irregulares e de pseudopalavras (metade
dos casos); leitura preferencialmente lexical, semelhante
ao padrão de dislexia fonológica (quatro
casos ou 28,6% do grupo); e leitura preferencialmente
fonológica, semelhante ao padrão de dislexia de superfície
(dois casos ou 14,3%). Um dos casos deste
grupo usava bem ambas as rotas de leitura, sendo suas
dificuldades evidentes na escrita e, provavelmente, na
compreensão de leitura textual e na produção escrita
de histórias (critérios adotados para seleção dos grupos).
Na escrita foram encontrados apenas dois padrões
de dificuldades nos casos do grupo de 2ª série com dificuldade
de leitura e escrita: imprecisão no uso de
ambas rotas de escrita, semelhante ao padrão de
disgrafia mista (78,6% deste grupo) e escritores preferencialmente
fonológicos, semelhante ao padrão de
disgrafia de superfície (três casos ou 21,4% do grupo),
cuja escrita de palavras irregulares não atingiu o
critério estabelecido. Em geral, a escrita de palavras
está mais comprometida do que a leitura nas crianças
de 2ª série que apresentam dificuldades de leitura e
escrita.
Essa mesma análise no grupo de 1ª série refletiu
resultados semelhantes, mas com algumas distinções,
especialmente na escrita. Na leitura, foram encontrados
quatro perfis diferentes: 1) uso preferencial da rota
fonológica, em 44,4% dos casos; 2) uso semelhante
(e impreciso) dos dois processos, em 33,3% dos
casos; 3) uso preferencial da rota lexical, em 11,1%
dos casos; e 4) uso preciso de ambas as rotas de leitura,
em um caso. Na escrita também foram encontrados
quatro perfis: 1) uso rudimentar de ambas as rotas, em
33,3% dos casos; 2) uso preferencial da rota lexical,
em 33,3% dos casos; 3) uso preferencial da rota
fonológica, em 22,2% dos casos; e 4) precisão no uso
de ambas as rotas, em um caso.
Portanto, o grupo de 2ª série com dificuldades de
leitura e escrita é heterogêneo em termos de rotas de
leitura e escrita de palavras e apresenta dissociações
duplas entre as rotas fonológica e lexical (rota
fonológica melhor do que a lexical e vice-versa) na
leitura e dissociações simples na escrita (apenas no
sentido de rota fonológica melhor do que a lexical).
Todos os padrões de desempenho em leitura e escrita
encontrados nos casos do grupo de 2ª série com dificuldade
de leitura e escrita foram também encontrados
nas crianças de 1ª série, com escores semelhantes
em leitura e escrita. Porém, na 1ª série há outro perfil
de escrita, preferencialmente lexical, não encontrado
nos casos de 2ª série com dificuldade de leitura e
escrita, mas sim nos casos de 2ª série competente em
leitura e escrita.
Os resultados deste estudo apresentam duas implicações,
uma com relação aos modelos cognitivos de
leitura e de escrita de dupla-rota e outra com relação à
natureza atrasada ou desviante dos problemas de leitura
e escrita das crianças de 2ª série com dificuldade de
leitura e escrita.
Considerando todos os casos estudados, provenientes
dos três grupos distintos, conclui-se que em
crianças alfabetizadas no sistema de escrita do português
é possível encontrar variabilidade no uso
das rotas de leitura e de escrita, que representam
dissociações no uso dos processos lexicais e fonológicos.
As dissociações fornecem evidência empírica
para as teorias de Dupla-Rota de leitura e de escrita,
pois mostram que apesar de desenvolverem-se de forma
inter-relacionada (não foi encontrado uso exclusivo
de uma rota em detrimento de outra), são processos
distintos, em que um pode predominar sobre o outro.
O fato da rota fonológica de leitura apresentar algum
grau de funcionalidade na maioria dos casos 2ª
série com dificuldade de leitura e escrita e dos perfis
de dificuldades de leitura e de escrita serem semelhantes
aos encontrados em crianças de 1ª série com mesmos
escores em leitura e escrita sugerem que esse grupo
apresente um atraso e não um desvio de desenvolvimento
das habilidades de leitura e escrita. Considerando
os modelos de desenvolvimento da leitura, como
o de Share (1995), essas crianças estão seguindo o padrão
do desenvolvimento normal, mas de forma mais
lenta.
Nos casos que apresentam dificuldades no uso da
rota fonológica (leitores preferencialmente lexicais),
esta rota, apesar de deficitária, ainda tem algum
grau de funcionalidade, permitindo que estas crianças
usem-na na identificação, mesmo imprecisa, de palavras
não familiares e de pseudopalavras. Salientando
o papel central na aquisição da leitura do uso desta
estratégia fonológica, Share (1995) afirma que as representações
do sistema de grafia-som, inicialmente
incompletas e simplificadas, modificam-se e refinamHeterogeneidade
nas estratégias de leitura/escrita ... 89
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se com a experiência com escrita, envolvendo progressivamente
a compreensão de relações mais completas
e acuradas entre ortografia e fonologia. Este mecanismo
provê uma oportunidade para a aquisição de informação
ortográfica, processo denominado “lexicalização”
da rota fonológica no curso do desenvolvimento
da leitura.
O presente estudo apresenta resultados semelhantes
aos encontrados por Bryant e Impey (1986), que
compararam dois casos de dislexia de desenvolvimento,
um do tipo fonológico e outro do tipo de superfície,
com um grupo de leitores normais, emparelhados por
nível de desempenho em leitura. O grupo de leitores
normais como um todo mostrou os mesmos sintomas
dos casos de dislexia. Os autores concluem que nenhum
sintoma é característico da dislexia, sendo ambos
padrões – fonológico e de superfície – encontrados
em crianças com desenvolvimento normal de
leitura. Os autores ainda sugerem que os termos
fonológico e de superfície podem estar sendo mal empregados,
pois implicam em descontinuidades, quando,
na verdade, há um contínuo.
Assim como em outros estudos da área (Pinheiro,
1999, 2001, Castles e Coltheart, 1993, Manis e cols.,
1996), aqui foram encontrados tipos distintos de dificuldades
de leitura, mas as proporções de cada tipo
divergem. As diferenças podem ser decorrentes das
formas de avaliação e categorização dos grupos, das
diferenças dos sistemas de escrita no qual as crianças
foram alfabetizadas e de diferenças individuais entre
as próprias crianças. Além disso, fatores socioculturais,
como métodos de ensino e qualidade deste
e nível de letramento familiar não foram controlados.
Snowling e Nation (1997) salientam a dificuldade
de classificar um grupo de disléxicos por três motivos:
1) a variação entre as crianças disléxicas não é significativamente
maior do que a encontrada em leitores
normais, emparelhados por nível de leitura; 2) muitos
disléxicos mostraram traços de mais de um subtipo de
dislexia; e 3) algumas crianças “moviam-se” entre os
dois subtipos – fonológico e de superfície – durante os
dois anos de acompanhamento.
O presente estudo mostra o predomínio de uso de
uma das rotas em detrimento da outra, tanto nos casos
de 2ª série com dificuldade de leitura e escrita quanto
nos casos de 1ª série, emparelhados por desempenho
em leitura e escrita. Já nas crianças de 2ª série competentes
em leitura e escrita, essas dissociações duplas
na leitura não foram encontradas, sugerindo que são
perfis característicos do início do processo de desenvolvimento
da leitura e que persistem nas crianças com
dificuldades de leitura e escrita.
CONCLUSÕES E
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas dificuldades de leitura e escrita, assim como
no início de processo de escolarização (1ª série), foi
possível encontrar dissociações duplas entre as rotas
de leitura, fonológica e lexical. O fato de todos os padrões
de dificuldades de leitura e de escrita terem sido
encontrados nos casos de 1ª série, com semelhantes
escores em leitura e escrita de palavras, sugere que as
crianças de 2ª série com dificuldade de leitura e escrita
estudadas apresentam atraso nas habilidades de leitura
e escrita e não um padrão desviante. Porém, devese
interpretar com cautela tal inferência, já que não é
possível garantir que o grupo de 1ª série seja, na íntegra,
composto por crianças que representem o padrão
de desenvolvimento típico das habilidades de leitura e
escrita.
O fato de haver padrões distintos de dificuldades
de leitura e de escrita indica que os déficits subjacentes
a estas dificuldades variam, necessitando de intervenções
específicas e compatíveis com as características
intrínsecas de cada caso. O objetivo da avaliação com
base nos modelos da Neuropsicologia Cognitiva é desvendar
as estratégias subjacentes ao baixo desempenho
na leitura e escrita, o que permite indícios para o
processo de intervenção e de ensino. Mais importante
do que afirmar se a uma determinada criança é ou não
disléxica é analisar as suas estratégias de resolução de
tarefas, informação útil na melhoria da qualidade de
ensino-aprendizagem destas crianças.
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